Quarentena — Histórias para lembrar, experiências contadas é mais do que um livro; é o triunfo da persistência e do trabalho sobre a adversidade e a incerteza. Em suas páginas, o leitor/leitora encontrará histórias comoventes e inspiradoras, narradas por personagens demasiadamente humanos.
Vamos começar por apresentar o contexto em que as narrativas (isso mesmo, narrativas no plural, porque são vários relatos) foram criadas.
Estamos em 2020. É o auge da pandemia de coronavírus, as aulas presenciais foram suspensas e professores e alunos estão confinados em suas casas, como resultado das medidas sanitárias adotadas em todas as cidades do país para conter o avanço da Covid-19. Os hospitais estão lotados de doentes (alguns em estado crítico nas UTIs) e o número de mortes em decorrência da doença cresce em ritmo acelerado.
O livro, organizado pelas professoras Allessandra M. Cavalieri, Claudia R. Giroto e Cássia Fernanda S. Fortuna, reúne breves relatos e ilustrações de vinte e seis alunos da EMEF Thereza Tarzia – Ir. Rosamaria Tarzia, da cidade de Bauru, interior de São Paulo.
Os curtos (alguns nem tanto) capítulos narram em primeira pessoa a experiência de crianças de seis e sete anos na quarentena. Ilustram as páginas desenhos feitos também por elas. Os textos reproduzem as falas dos estudantes, transcritas de gravações enviadas pelos pais e cobrem o período que vai de março (início da pandemia e das restrições) a novembro de 2020.
Ensino remoto e seus desafios
Ao apresentar o livro, Cláudia Giroto já chama a atenção para o desafio de superar as dificuldades do ensino remoto, sem deixar também de comemorar os resultados inesperados:
Cada capítulo do livro apresenta experiências vivenciadas pelas crianças durante o período da quarentena. Por meio de atividades que propiciaram espaço/tempo de interação, muitas vezes dificultadas pelo modo virtual, resultaram muitas aprendizagens, assim como encontros com o OUTRO.
Trata-se, sim, de comemoração, porque, como diz Cláudia Giroto,
Ao encontrar e confrontar as ideias de outrem, as crianças modificaram seus modos de agir linguisticamente num movimento de reelaborações, generalizações, variações e idiossincrasias demonstradas a cada encontro, em cada enunciado, a cada desenho criado, os quais repercutiram nos textos cujo acabamento provisório se deu com a finalidade de comporem esta obra.
Antes de passarmos aos relatos das crianças, vamos apresentar as professoras Alessandra e Cássia Fernanda, que, assim com seus alunos, foram profundamente transformadas pela experiência do ensino virtual durante a quarentena.
A professora Alessandra relata:
Sair do ensino presencial e migrar para o remoto foi algo inimaginável, principalmente com alunos do primeiro ano, os quais estão ainda percorrendo os caminhos da alfabetização.
Vice-diretora da escola, Alessandra reconhece que, no começo, resistiu à ideia das aulas virtuais, mas acabou por aceitar a nova modalidade de ensino. E admite que se surpreendeu:
Sem outras possibilidades, acabei por aceitar as aulas virtuais e qual não foi minha surpresa quando alcançamos resultados satisfatórios, haja vista os relatos de experiências das crianças.
A professora Cássia Fernanda, por sua vez, não tem dúvida de que “esse período [das aulas na quarentena] ficará marcado em nossa memória”. Para ela, o desafio virou oportunidade de aprendizado:
Aprendi a usar novas ferramentas tecnológicas com o objetivo de interagir com os alunos durante a quarentena. Dessa forma, foi possível conversar com as crianças e ouvir seus relatos sobre esse período tão singular da vida de todos.
A professora enfatiza o aspecto emocional da experiência das aulas remotas:
Os momentos de diálogos foram carregados por diversos sentimentos: alegria, tristeza, medo, saudade, dentre outros sentimentos que permeiam nossa vida desde a infância. Somos seres relacionais, e os relatos das crianças evidenciaram essa necessidade humana.
Fica evidente, a partir desses depoimentos, que não exageramos quando dissemos, no início, que se tratava de histórias de pessoas demasiadamente humanas.
Os relatos dos alunos
Agora, falemos dos outros protagonistas (e autores) dessa história. Seu nomes poderiam fazer parte da lista de chamada de qualquer escola brasileira: Maria, Samuel, João, Pedro, Daniela, Fernanda, Arthur, Cauã…
Nos relatos, os alunos se identificam e logo passam a falar do que está sendo bom e do que não está sendo bom na quarentena. Vamos a um exemplo:
Eu sou a Maria Valentina, eu tenho 6 anos e numa atividade que eu fiz eu descobri que eu era filha, neta e prima.
Uma coisa que me deixou triste na quarentena foi deu não poder ir nos lugares, não poder ir no cinema, e deu também não poder sair muito.
Uma coisa que me deixou feliz na quarentena, uma coisa que me deixou feliz foi que eu ia à minha avó mesmo na quarentena, é porque eu tinha que ver ela.
Como não vê autenticidade na fala (ou escrita) simples mas honesta da pequena Valentina?
É desse material (no sentido narrativo mas também psicológico) que se compõem os vinte e seis relatos dos alunos da EMEF Thereza Tarzia reunidos em Quarentena.
É quase impossível não se comover ao ler a transcrição do depoimento do pequeno Samuel, de seis anos:
Na quarentena eu fiquei feliz, eu ganhei um vídeo game, eu fiquei triste, eu perdi um cachorro, cão, outro cachorro. Eu fiquei triste, quebrou minha bicicleta amarela, mas eu fiquei feliz, eu ganhei outra bicicleta azul.
Olha aqui, eu… Olha agora meu vô e minha vó não podem ficar aqui, eu fiquei muito triste porque eles foram lá em São Paulo para morar.
Quando acabar a quarentena eu quero voltar à escola.
E seguem-se outras histórias…
Não vamos roubar ao leitor ou à leitora o prazer de descobrir, por si mesmos, a riqueza desses relatos. Mas fica aqui a constatação da professora Alessandra de que alunos e professoras foram transformados, positivamente:
Pelas experiências contadas e registradas em vídeo e nesse lindo livro, de um tempo único, constituídas singular e coletivamente, as quais ficarão guardadas para sempre em nossas memórias.
No fim, resta a lição de que a dedicação, o empenho e o amor dos professores podem, sim, superar desafios tecnológicos (neste caso, do ensino remoto) e humanos (neste caso, da separação física e emocional de estudantes e docentes).