Fábula é um gênero literário tradicional que narra fatos com uma verdade moral oculta (subentendida) e que se revela às mentes perspicazes de crianças e também de gente grande.
Pois é de disso que trata o belo O sapato que sabia andar, de Luiz Vitor Martinello. Originalmente lançado em 1985, em consonância com o espírito da democratização do país, reaparece agora, com pequenas modificações, publicado pela Canal 6 Editora (2013).
Com ilustrações de Roberto Echeverria, o livro já entrega no subtítulo (Uma fábula que você começa criança e termina adulto) sua missão: ensinar sobre autonomia.
Mas é bom que se diga logo que autonomia não é o mesmo que autossuficiência.
A estória da Chinela Havaiana e seus companheiros (todos calçados) deixa claro que o percurso que vai da dependência à autonomia passa por pertencer a um grupo e ter uma identidade que se define com, a partir e, em certo sentido, contra esse mesmo grupo.
Porque ser adulto é ser capaz de cuidar de si e do outro, como vemos, por exemplo, em Pedrão — um sapato tamanho 54 que carrega um chinelo velho a certa altura da aventura.
Liberdade
O sapato que sabia andar conta uma jornada rumo à liberdade empreendida por esses objetos que protegem nossos pés. Mas…
Mas liberdade é uma palavra que ganha múltiplos sentidos, quando a colocamos no contexto dos adolescentes — público para o qual o livro pode servir como um roteiro para indagar sobre os dilemas próprios dessa fase da vida.
Porque é na adolescência que nos defrontamos com mais força com questões sobre identidade, liberdade e autonomia, muitas vezes de forma turbulenta e dolorosa.
É sabido por pais, educadores e psicólogos que os adolescentes buscam se afirmar (isto é, construir suas identidades) opondo-se a figuras de autoridade (pais e professores incluídos, obviamente). Mas o que muitas vezes passa por rebeldia é na verdade a luta do adolescente para encontrar seu lugar no mundo, sentir-se à vontade na própria pele e sobreviver à tempestade dos hormônios e às pressões da sociedade para virar um adulto independente.
E o processo em direção à autonomia — com seus percalços, armadilhas e promessas falsas de independência — não será completo antes da superação do medo de ser rejeitado, porque a necessidade de ser aceito pelo grupo de amigos (outros adolescentes) está atrelada à busca por validar crenças e expectativas que meninos e meninas cultivam.
Voltando à nossa estória, a jornada dos sapatos, sandálias, botas, congas, chuteiras e chinelos de O sapato que sabia andar é também a jornada da entrada na vida adulta, quando deixamos a casa dos nossos pais. Porque um ninho é um lugar provisório.
O livro reserva, porém, o papel de herói não à Chinela Havaiana, que deu início à fuga dos calçados dos seus lares e pés.
A certa altura, com os sapatos já vivendo em um “país” com um “dirigente” (o sapato professor), regras de conduta (sempre andar na sombra é uma delas) impostas a todos e provérbios escritos em placas espalhadas por todos os lugares, uma figura ignorada até então sairá do anonimato (e da sombra!) para fazer história!
O enredo dessa reviravolta na estória começa assim: “Tinha um sapato roto, pertencente a um velho filósofo, catedrático numa universidade, aposentado por falta de ofício. Viera…”
Nosso herói-filósofo tinha “solas gastas, cadarços encolhidos”, mas era um pensador. Ou melhor, sabia pensar por conta própria. E será essa qualidade que — “em uma manhã, a primavera solta nos pastos” — fará o nosso filósofo sair, como se diz, da sua zona de conforto e começar uma “revolução”, desta vez uma que colocará em xeque a ordem estabelecida do “país dos sapatos”.
Em um achado feliz, o autor descreve assim o assalto do sapato-herói às leis e costumes que regem a vida dos calçados: “Porque o velho filósofo não seguia os caminhos preestabelecidos, não parava para ler os provérbios, apenas seguia, o sol o iluminando, desobedecendo à ordem fundamental do país…”
E qual ordem seria essa? “NÃO ANDAR DE FRENTE PARA O SOL!”
Até então, imperava a “lei da sombra” (uma metáfora apta para descrever o conformismo, a submissão e a falta de imaginação), seguida por todos os outros sapatos.
O sapato que sabia andar convida o leitor/a leitora a olhar para suas escolhas. Trata-se de um convite inadiável, diante da necessidade, hoje mais do que nunca, de ensinar às gerações de hoje e de amanhã o valor da autonomia.
No fundo, o que essa fábula nos convoca a desafiar não são as normas da sociedade — não podemos viver sem elas, porque cairíamos em um estado de anomia que nos levaria à autodestruição — mas nossas certezas cegas, aquelas crenças que limitam nossa capacidade de imaginar e criar novas realidades — para nós e para as pessoas ao nosso redor!
O autor
Formado em Filosofia e Letras, Luiz Vitor Martinello é professor de Língua Portuguesa e Literatura e nas horas vadias, como ele diz, é poeta.
Na década de oitenta, Luiz Vitor publicou dois livros infantojuvenis pela Editora do Brasil: O Penuginha, em 1989 (coleção Alegria, Fantasia e Realidade), e, alguns anos antes, em 1985, O Sapato que sabia andar, este pela coleção Texto Imagem. Ambos foram adotados por escolas de todo Brasil e são lembrados com carinho pela geração de crianças da época.
Nosso próximo post será sobre o livro O Penuginha, também reeditado pela Canal 6 Editora.